Então

domingo, 27 de fevereiro de 2011

A coxinha reencontrada - HUMBERTO WERNECK



HUMBERTO WERNECK

Longe de mim querer matar você de inveja, mas dias atrás cravei os dentes numa coxinha de camarão com catupiry. Numa, não; em três. E saiba que o "inha", aí, não é diminutivo, é tratamento carinhoso, um tanto emocionado, da parte de quem por 13 anos esteve privado dessa rechonchuda maravilha.


Bobagem minha: para morrer de inveja, você precisaria saber o que vem a ser uma coxinha de camarão com catupiry. OK, estou informado de que há por aí algo que se apresenta como tal, mas posso asseverar que se trata de embustes culinários. Não, não falo desses simulacros - falo da legítima coxinha de camarão com catupiry, da única, muito imitada e jamais igualada, que existiu em Belo Horizonte durante pouco mais de 20 anos, até desaparecer, sem deixar sucessoras à altura, no ano por isso infausto de 1998.
Nunca me conformei com o sumiço do pitéu com que me regalei décadas a fio, toda vez que minhas papilas gustativas visitavam a capital mineira. Alguns meses atrás, numa crônica para o guia de comes & bebes da Veja que circula em Belo Horizonte, já no título fui soltando, não a franga, mas o camarão: "Saudade da coxa de catupiry." Na última linha, joguei sem maior esperança uma garrafa ao mar: "Tem por aí alguma dona que faz?"
Pois não é que apareceu uma? E não qualquer dona: ninguém menos que Thereza Oliveira, a inventora da supracitada perdição gastronômica. De Tiradentes, onde vive faz uns anos, ela ergueu um dedo, olha eu aqui!, e deixou no ar a tentação: que eu fosse aplacar a saudade da coxinha de camarão com catupiry.
Quis a sorte que recentemente me viesse convite para lançar um livro ali, e quando escrevi a Thereza para dizer que estava a caminho, ela anunciou a coincidência: eu ia me hospedar ao lado de seu charmoso mocó tiradentino - num alto de morro onde de uns anos para cá se construíram várias casas "antigas". Lá fui bater, salivando, mal pus a mala na pousada, e na porta o Levindo, marido da Thereza, já foi me pondo a par da peleja que fora conseguir camarões - aqueles bitelos, que em Minas chamam de "VG", iniciais de "verdadeiramente grande". (Há também o "VGzinho").
Além de três formidandas coxas de catupiry, Verdadeiramente Gloriosas, Thereza me serviu a história do fabuloso salgado, por ela concebido na cozinha de sua inesquecível Doce Docê, casa que na capital mineira foi o máximo em doces e salgados entre 1973 e 1998. Seu irmão Pedro, hoje embaixador, morava no Rio e nas confeitarias achava constrangedor ter que pedir um monte de salgadinhos para matar a fome - será que não dava para fazer um salgadão? Thereza, primeiro, foi de peito de frango, que teve a ideia inédita de revestir de catupiry - até que lhe viesse a ideia melhor ainda de trocar o frango pelo camarão. 
Pra quê! - lembra ela. A novidade se impôs a todas as demais delícias da Doce Docê. "As coxinhas desbancaram tudo", conta Thereza. Filas na porta. A loja se tornou a maior compradora de catupiry. Não espanta que tenham pipocado contrafações. Mas como copiar, se o fabricante, instado pela quituteira, desenvolveu para ela um catupiry exclusivo, cremoso mas apto a derreter? Para não falar nos segredos da massa, um angu cozido e sovado, mas muito sovado mesmo - "tem que ter braço, tem que ser forte" - numa pedra mármore, "até virar um veludo".
Mas por que então a loja, que teve três pontos em Belo Horizonte e um em Ouro Preto, acabou fechando? Primeiro foram "os fiscais do Sarney", num tempo em que a burrice oficial tabelou até salgadinho, pondo no mesmo balaio coxinhas nobres e plebeias. "Um dia, por causa de uns centavos, teve viatura na porta, queriam me levar presa", escandaliza-se Thereza. Depois, foi uma temporada longe da cidade, acompanhando o marido em Brasília. Mais adiante, o escasso apetite dos três rapazes do casal pelo negócio. Por fim, como tudo o mais, o requeijão entrou em decadência - "o catupiry não é mais o mesmo, não derrete", lamenta Thereza, cansada de garimpar sucedâneos. Ressuscitar a casa em Tiradentes, onde tem ateliê de artesanato? Ela não se anima. Assim sendo, coxinha de camarão com catupiry, só de vez em quando e para uns happy few - mas fiquemos por aqui, eu já disse que não quero matar você de inveja...



fonte Estado de São Paulo

Um comentário:

Rafaela Montenegro disse...

Oi Humberto, hoje desci depois do trabalho a Avenida Afonso Pena, e me lembrei da antiga e inesquecível Doce Docê. Fui tão longe nas lembranças que cheguei a sentir o cheiro e o gosto daquela coxa de catupiry (hummmmmmm.....). Então resolvi digitar no google o nome da lanchonete e sua iguaria enlouquecedora, procurando saber se poderiam estar abertos em algum lugar, chegando até você...ai que inveja, só de ler você contando me deu água na boca e também de lamentar por um tempo que não volta mais, onde a qualidade e o sabor verdadeiro das coisas EXISTIAM.

Abraço,

Rafaela Montenegro