Então

terça-feira, 22 de março de 2011

Um país em ruínas = Cristovão Tezza


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Cristovão Tezza


Há algo de atávico na nostalgia rural – nós amamos a ideia de que o campo permitiria uma vida mais “humana”, ainda que no terceiro dia de experiência já dê saudades da internet na veia e do saboroso inferno urbano

A bruxa está solta – terremoto seguido de tsunami no Japão, com o fantasma nuclear soltando fumaça, e chuvas torrenciais por aqui, levando casas, pontes, estradas e vidas. Entre a natureza e a civilização, os bípedes implumes corremos de um lado a outro, no desespero de repor a ordem do mundo e voltar em segurança à rotina. Para dar algum sentido às coisas, há quem busque explicações transcendentes para a tragédia – castigo divino, conspiração dos astros, o peso do destino. Já eu prefiro ficar com os pés na terra, que, dizem, por aqui não treme, ainda que desça o morro com as águas. Nessas situações, vê-se o melhor e o pior – a solidariedade comunitária de um lado, a precariedade das obras, de outro. E a clássica inoperância do Estado brasileiro, com seus bolsões de eficiência agindo mais pela vontade firme de pessoas e comandos do que pelo azeitamento da máquina. Minha sensação, entretanto, é de viver sempre em um país em ruínas – parece que, ao mínimo aperto, nada funciona.
Há uma semana tive de ir de carro a Florianópolis, o que por sorte consegui fazer sem problemas, num dia de estrada liberada; já a volta levou nove horas. Todas as opções de chegar aqui, sempre através da BR-116, eram ruins. A recomendada pela Polícia Rodoviária era muito extensa, mas passava por rodovias maiores e pavimentadas. Preferi me aventurar com um GPS recém-adquirido (não resisto a uma boa traquitana) pelo interior, com suas estradinhas, vacas e bananeiras – de Blu­­­menau, avancei por Indaial, Itaiópolis e Doutor Pedrinho, onde almocei e de onde saí do conforto pegando uns 50 quilômetros de estrada de terra. Foi a melhor parte: silêncio, cavalinhos no campo, hortências à margem, casas perdidas, igrejas, lugarejos e quando muito um ônibus escolar aqui e ali. Por felicidade, o tempo estava bom. Há algo de atávico na nostalgia rural – nós amamos a ideia de que o campo permitiria uma vida mais “humana”, ainda que no terceiro dia de experiência já dê saudades da internet na veia e do saboroso inferno urbano.
Passado o interlúdio sertanejo, em que, desviando dos buracos e fazendo curvas suaves, sonhei uma vida paralela que jamais vou viver, criando galinhas e contemplando araucárias da varanda de madeira pintadinha de amarelo, fui despejado brutalmente na BR-116, onde avancei a passos de cágado espremido entre duas carretas, durante horas. O Brasil inteiro passava pelo mesmo funil naquele triste fim de tarde. Lembrei que, meio século atrás, vim criança para Curitiba exatamente na mesma estrada, então a orgulhosa BR-2, o primeiro asfalto que unia o Sul do Brasil, nos brilhantes anos de JK. Cinquenta anos depois, a estrada continua exatamente a mesma, de mão dupla, com o mesmo traçado, camada sobre camada de licitações e asfalto – e nessa tarde de março de 2011 prosseguia sendo a única opção. A diferença é que agora tem pedágio.
fonte: Gazeta do Povo

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